Para a primeira semana de Clube do Filme nós analisaremos Blade Runner (1982). Mais especificamente, a versão ultimativa, denominada The Final Cut, distribuída pela Warner Bros. em 2007. Essa obra-prima de Ridley Scott presta homenagem ao gênero film noir, que dominou Hollywood nas décadas de 40' e 50'. Na mesma medida, Blade Runner invoca o gênero neo-noir, trazendo sensibilidades contemporâneas à película, deixando de se restringir às convenções temáticas sobre a morte, característica do noir. O que é ainda mais peculiar, a combinação que o universo apresenta de low-life e high tech tornou a obra em um dos primeiros e mais relevantes proponentes da estética Cyberpunk.
ROTEIRO
A premissa da narrativa é exposta imediatamente no início do filme, com o texto explicativo sobre Replicantes e Blade Runners. Esse tipo de introdução ao universo geralmente serve como um facilitador. Star Wars faz uso do texto para poder partir imediatamente à ação, sem ter que explicar, por meio da história, o universo ao público, acelerando o ritmo do filme. Todavia, Blade Runner não é um filme de ação, mas um neo-noir reflexivo, que lentamente revela as informações de seu universo. A primeira imagem que aparece é de explosões saindo de prédios, em conjunto com com a marcante música de Vangelis, buscando estabelecer a disposição do universo. Assim, o questionamento de se a exposição apresentada é necessária se torna especialmente válido.
Neste ponto vale diferenciar como a versão original e o Final Cut tratam exposição. Notadamente, a maior diferença é a narração feita por Deckard, arquétipo de filmes noir, foi eliminada para a versão ultimativa. Assim, existe uma dicotomia onde o texto inicial é a herança de um filme muito mais explícito, mas a simplicidade da exposição facilita a reflexão sobre os temas discutidos nos momentos de baixa, onde geralmente a narração guiaria o pensamento do espectador, abrindo o filme à subjetividade.
Como o vídeo de Lessons From the Screenplay expressa, o filme faz o uso e a subversão da estética e temática noir para discutir o que significa ser humano e estar vivo. Mas um dos arquétipos tradicionais do gênero que o filme quebra é o mistério, decidindo focar mais na humanidade dos replicantes e menos na mística violenta de vilões tradicionais de film noir.
Como o vídeo de Lessons From the Screenplay expressa, o filme faz o uso e a subversão da estética e temática noir para discutir o que significa ser humano e estar vivo. Mas um dos arquétipos tradicionais do gênero que o filme quebra é o mistério, decidindo focar mais na humanidade dos replicantes e menos na mística violenta de vilões tradicionais de film noir.
COMPOSIÇÃO VISUAL
Falar que o visual de Blade Runner é memorável não faz jus ao legado desse filme. A incorporação da estética de alto contraste de film-noir em um contexto Cyberpunk hoje parece inerente ao visual desse sub-gênero. Mas é interessante compreendermos como essa estética foi adaptada para e amplificada pela sociedade futurista apresentada.
Quando nos referimos ao visual de film-noir muitas vezes as características que vem à mente são o alto contraste de luz e escuridão da imagem, e a constante presença de fumaça de cigarros. Todavia, quando pensamos na era de ouro de film-noir nos anos 1940', um elemento que muitas vezes passa despercebido, mas igualmente contribui à ambientação, é a decoração típica Americana durante a segunda-guerra mundial. E a replicação dessa estética nas decorações de Tyrell e nas roupas vestidas por Tyrell e Rachel expandem a alusão do filme ao gênero noir.
Toda essa ambientação é elevada pelos espetaculares efeitos especiais empregados no filme. Se voltarmos a analisar a cena de abertura, após o breve texto introdutório o filme abre com a música tocando por cima de uma vão aérea da cidade. A câmera traça pelas miniaturas, estabelecendo, de uma maneira quase meditativa, o universo, utilizando puramente sons e imagens para trazer o espectador para dentro do universo. O tamanho dos prédios ajuda a amplificar o senso de inimportância do indivíduo no contexto, instaurando uma reflexão niilista em um mundo hiper-corporalizado. É a destilação mais pura do conceito de "show, don't tell".
TRILHA SONORA
Assim como a cinematografia, a música de Blade Runner também se tornou sinônima com o gênero Cyberpunk. A combinação de synths, inseridos pelo compositor grego Vangelis na trilha sonora do filme, corta as belíssimas perambulações que a câmera realiza pela cidade, trazendo um aspecto de desconforto estático. Essa característica se tornou quase sinônima com o gênero, considerando o senso de intrusividade da tecnologia que a música traz. Porém, a qualidade da música não se restringe somente a essa dimensão.
O entendimento da influência da música sobre o resto do gênero é a dimensão mais relevante da trilha sonora, mas certamente vale ressaltar o gênero em cima do qual Vangelis construiu a música de Blade Runner. Assim, voltamos a retomar film-noir. A presença constante do piano certamente evoca a trilha sonora de clássicos do gênero, como Chinatown (1974), The Big Sleep (1946) e The Maltese Falcon (1941). O instrumento é extremamente efetivo em conduzir o espectador por narrativas mais lentas e reflexivas. Tradicionalmente, essa calma é amplificada em momentos de tensão por memoráveis peças orquestrais, que Vangelis aparentemente substituiu pelos seus sintetizadores.
PERFORMANCES
Julgar performances sempre é algo condicionado ao histórico dos atores e a percepção que nós, como público, temos deles. Assim, atores como Harrison Ford, que tem uma presença estabelecida no subconsciente do público, e traz uma série de expectativas. Com isso em mente, Ridley Scott foi bastante pungente ao invocar a sua persona de Han Solo como um detetive/Blade Runner. Quanto ao resto dos personagens as performances em geral atenderam às necessidades do filme e contribuíram à construção dos temas implícitos, mas os destaques são Daryl Hannah como Pris e Rutger Hauer como Roy Batty.
Destacando as performances de Daryl Hannah e Rutger Hauer, é notável que as melhores performances do filme são por replicantes. A qualidade dessas performances contribui com a construção da humanidade dos replicantes. Tanto Pris quanto Batty possuem personalidades extremamente peculiares, reinstaurando o quão únicos cada um deles são. É claro que essa construção culmina com o monólogo no final do filme.
TEMAS
Falar que Blade Runner discute aquilo que faz alguém humano e as ramificações de avanço tecnológico descontrolado é óbvio e clichê. Mais interessante é a discussão sobre COMO esses temas são abordados pelo filme. Então vamos começar com um dos símbolos mais marcantes do filme: o olho.
O olho no filme representa o conceito de percepção. No desenvolvimento da narrativa, a percepção que a polícia e a população dos replicantes como sendo ferramentas ou objetos, essencialmente remove a humanidade dessas criaturas inteligentes. Porém a inteligência dos replicantes remete à expressão "penso, logo existo" de Descartes, quando os replicantes se identificam e vêem como 'humanos'. A confrontação inicial do grupo de replicantes com o criador de olhos expressa essa busca por serem percebidos como humanos por outros olhos. Esse conflito culmina quando Roy Batty mata Tyrell ao colocar os dedos nos olhos de seu criador, frustrado com o fato de aqueles olhos serem incapazes de reconhecer a sua humanidade. Essencialmente o filme argumenta que a humanidade está nos olhos de quem vê, mas que a não percepção de alguém que se identifica como humano pode causar a marginalização dessa pessoa ou desse grupo, tornando a sua percepção de si mesmo irrelevante para a sociedade como um todo, que não os vêem como humanos.
A interpretação da temática do filme é fascinante e provoca uma reflexão bastante visceral sobre a nossa identidade como humanos, mas ao buscarmos traduzir os efeitos dessas conclusões para a vida real alguns aspectos do filme podem parecer dessoantes. Em um nível bastante explícito é possível associar os preconceitos enfrentados pelos replicantes aos preconceitos enfrentados por negros em países com uma tradição escravista. Os replicantes também eram usados como força de trabalho escravo e foram marginalizados pela sociedade após sair do contexto em que a sua produção era explorada. Essa marginalização força uma sobrevivência por meios ilícitos, que consequentemente leva a uma perseguição dessa população por parte das instituições policiais. Todavia, por mais coerente que essa associação pareça no papel, Blade Runner é cúmplice à própria ideologia que critica, ao não ter nenhuma representação negra prominente no filme. O argumento pode ser feito que a intenção de esta mensagem ser passada por subtexto impede uma representação negra nos replicantes, mas certamente existem outras possibilidades de incluir uma população mais diversa em papéis de prominência.
Outra leitura que podemos ter das temáticas do filme é focada na ideia da identidade de gênero e direitos trans. Mais especificamente, podemos associar a problemática de ceticismo metafísico, delineada pela filosofa trans Talia Mae Mettcher como sendo a inabilidade das pessoas de reconhecer transsexualismo como sendo sequer uma realidade. O paralelo surge quando entendemos que os replicantes são desumanizados por não serem reconhecidos como aquilo que realmente são, e pessoas trans são ou se sentem marginalizadas pela inabilidade da sociedade de as reconhecerem por aquilo que realmente são. Porém, novamente, a falta de representatividade trans no filme, limita a efetividade dessa leitura.
No fim das contas a questão que se levanta é o quão válidas são essas leituras e, mais especificamente, se a ideia da 'Morte do Autor' se aplica neste contexto. Em sua redação de 1967 intitulada 'A Morte do Autor' (La mort de l'auteur), o crítico literário francês Roland Barthes argumenta contra a abordagem crítica americana da época, que buscava, de uma maneira mais científica, determinar o significado definitivo de uma obra, ao analisar o contexto no qual ela foi escrita, quem a escreveu e quais as inclinações políticas, sociais, etc. de seu autor. A oposição de Barthes surge quando ele argumenta que partindo do momento em que a obra deixa a mente de seu autor, ele morre em um sentido metafísico, sendo válida somente a interpretação da pessoa que consumiu a obra. Considerando essa perspectiva, qualquer uma das leituras expostas são válidas. Essa ideia é especialmente interessante no contexto de Blade Runner porque, assim como o filme, ela argumenta sobre como a percepção de algo modula a realidade.
Agora, um dos argumentos contra a morte do autor, na interpretação de Blade Runner, é a discussão se a falta de representatividade é uma escolha deliberada da narrativa ou um condicionamento do contexto de produção do filme na época. Se aplicarmos a morte do autor, e admitirmos que a falta de representatividade faz parte da história apresentada, temos uma contradição fundamental das leituras expressas. Porém, se determinarmos a falta de representatividade como consequência de limitações da produção, nós estamos admitindo a existência do autor e as suas intenções autorais, eliminando a validade de interpretações subjetivas, tendo que admitir somente os temas explicitamente citados no filme como sendo leituras válidas.
Essa refutação das leituras mais subjetivas não quer dizer que o filme seja menos criativo ou inovador na exploração dos temas que são expressamente apresentados, mas condiciona a sua interpretação ao abstrato. É nesse contexto onde a versão original, com a narração explicativa de Deckard, se torna mais efetiva pela sua explicitude. Porém, voltamos à noção de as contradições ocorrerem em um nível teórico, e dificilmente serem consideradas pelo público em geral nas suas interpretações do filme. Essa é a genialidade da forma como o filme explora metafísica. Independentemente da realidade científica, teórica e psicológica de uma pessoa, um filme ou um replicante, aquilo que impacta a realidade é a forma como as instituições dentro das quais vivemos percebem e reagem ao mundo.
VEREDITO
Em conclusão, Blade Runner é a definição de uma obra-prima. Todos os aspectos técnicos do filme são executados com maestria. Os conceitos não são somente ideias interessantes em cima das quais o gênero se desenvolveu, mas dimensões exploradas com o detalhismo e profundidade que em 2020 ainda mantêm o filme como um dos melhores proponentes do gênero. Todavia, Blade Runner não foi uma obra-prima imediatamente, mas construída ao longo das décadas. A composição visual, trilha sonora e performances sempre foram excelentes desde o momento em que o filme fora lançado em 1982, porém a narrativa evoluiu com cada nova versão lançada. E a melhoria da história sendo contada também melhorou as explorações temáticas do filme, se tornando menos superficial e mais meditativo. A capacidade de Blade Runner de invocar empatia com os replicantes aumentou com cada nova versão, consolidando mais humanidade no coração daqueles que engajam com o filme.
⭐⭐⭐⭐⭐
Comentários
Postar um comentário